sexta-feira, 23 de julho de 2010

O VELHOTE DO CAROÇO

Marcos, em 1979 eu consegui uma transferência e estava finalmente na minha terra natal, Guaíba (RS), de mala e cuia.

A Agência era grande e bem diferente das duas onde já tinha trabalhado, a bem da verdade na terra da gente é tudo diferente, ainda mais que a clientela é conhecida e nunca falta “Oi como vai teu pai? Como vai tua mãe?”, e isto era muito gostoso mesmo.

Para não fugir à regra, nem tudo era perfeito e a agência tinha uma deficiência em “material” feminino, o que dificultava lotar alguém na “Plataforma”.

Sendo assim a administração optou por utilizar dois rapazes, funcionários novos e até “bem apessoados” e fui um dos escolhidos. Gostou dessa? Eu hein? “Alain Delon de Guaíba!”. Que saudade! E dizer que até cabelo eu tinha!

O outro se chamava Gerson, meu amigo desde a infância e formamos uma dupla das boas.

Eu já era casado, ele quase lá e nos valemos de uma boa amizade com o gerente da CEF para conseguir um financiamento do BNH(lembra?), pois já tínhamos comprado terreno, faltando só a “verba” para a construção.

A coisa não era fácil, construía primeiro e recebia a liberação da parcela depois da vistoria do engenheiro da CEF, mas sendo a única alternativa da época, tivemos que encarar assim mesmo.

Inevitável que logo ficamos numa penúria danada e estávamos sempre jogando com o dinheiro de um e do outro. Era na base do “vendo meu carro e te empresto um pouco, mais adiante tu vende o teu e me devolve”, enfim uma verdadeira ginástica financeira.

Eis que, trabalhando na Plata, éramos os encarregados de entregar os carnês do INSS para os aposentados, pois naquele tempo nem se falava em cartão magnético.

Um belo dia recebemos um novo “produto”. Um seguro de vida para vender. Exigências poucas, coisa da época. Era só preencher os dados e nomear o beneficiário. Nunca vendemos nenhum.

Em meio ao expediente, ele atendendo aberturas de contas e eu entregando os carnês, olhei para a fila e vi um “velinho”, que tinha um “caroço” horrível bem no topo da cabeça. Coisa muito feia, sem dúvida era um tumor exposto.

Cutuquei o Gersom e disse: “Olha lá, aquele velinho do “caroço”, não dura dois meses. Vamos fazer um seguro daqueles para ele e entramos como beneficiários. É fácil e ele nem vai saber o que está assinando”!

Claro que meu companheiro (cumpanhero não, por favor) se empolgou na hora. “Bah, pagamos as contas e ainda terminamos a casa”.

Nesse conversa daqui e dali, eu atendi o velhote e o dispensei. Deixamos para o mês seguinte, dando um prazo para discutir melhor o negócio.

Foram 30 dias de planejamento intenso, armamos até uma estratégia para “aliciar” o potencial defunto. Contas de todas as formas. Sonho de vida resolvida, até carro novo pintou nos planos.

Em poucos dias eu fui mandado para a Tesou e ele ficou lá com outro colega. Não voltei mais e nosso plano foi para o espaço. Nossa riqueza ficou só no sonho, embora soubéssemos que na hora “H” não teríamos coragem de fazer, mas pelo menos valeu sonhar com os milhões.

Passou o tempo, fui embora de Guaíba e ele também. No início da década de 90 estávamos de volta, quase ao mesmo tempo.

Eu na bateria de Caixa e ele novamente na Plata.

Por ironia do destino, me coube pagar os aposentados do INSS, coisa que fazia com o maior prazer, pois realmente gostava de ver a felicidade deles pondo a mão na grana e digitando a senha com as mãos trêmulas, como se aquilo fosse a coisa mais importante de suas vidas.

Lembro de alguns, já trôpegos, que paravam na minha frente e os amigos gritavam lá da fila: “Fulano, agora põe os números, aqueles do papel”. Ô tempo bom. Saudades!

Marcos, pois não é que eu levanto a cabeça e chamo “Próximo” e quase caí do banquinho, veio de lá, mais de dez anos depois o velhote do “caroço”, firme e sorridente, com o caroço do mesmo jeito!

Olhei para a Plata e chamei o Gersom. Bastou ele levantar a cabeça e teve um ataque de riso. Eu outro. Larguei o guichê, corri para a cozinha. Cada vez que me recompunha e chegava na porta para voltar eu me deparava com o caroço do velhote e desabava outra vez. Não teve jeito, o supervisor da bateria teve que passar minha fila para o caixa ao lado.

Bem, ao menos economizamos o dinheiro do prêmio do seguro!

Ary Taunay Filho - Guaíba (RS)