domingo, 20 de junho de 2010

Complacência Mineira

Isa Musa de Noronha

A hospitalidade mineira é uma tradição que supera os limites da complacência ou, quem sabe? Supera as raias da paciência. Esta é uma história real. Os nomes foram cuidadosamente camuflados para, mineiramente, não ferir susceptibilidades.

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Entre desconfiado e aborrecido, o janota chegou à cidadezinha para tomar posse como Gerente do Banco do Brasil na agência local. Eram três horas de uma tarde de janeiro, por volta de 1957, e o sol tornava as ruas poeirentas insuportáveis. Chegando ao Banco, apresentou-se ao pessoal sendo cercado das boas-vindas gerais: tapinhas nas costas, cafezinho e a pergunta:

- Já arrumou acomodação?

- Não procurei ainda. Sabe como é. Vim ver se alguém me indica qualquer coisa para alugar e só depois vou trazer a família.

- Ah, faz o seguinte. Vamos lá para casa, descansar, tomar um bom banho, pegar uma bóia da vovó e depois o Gerente se arranja!



A casa da avó não era só “a casa da avó”. Tinha a esposa do solícito colega, a tia velha entrevada, quatro filhos, duas empregadas daquelas que ficam no emprego quarenta anos, um cão vadio, um papagaio bobagento, três canarinhos chapinha e um sabiá-laranjeira. Uma grande casa, dessas que não se vê mais. Alta no pé direito, janelas compridas, gelosia, alpendre com o tradicional banco de madeira, típico de estações ferroviárias, passadeira cobrindo a tábua corrida larga, cheirando a cera. Na sala, o relógio de carrilhão, de quina na parede, o piano antigo, poltrona cômoda junto ao rádio que ocupa lugar de destaque. O corredor comprido, quartos lado a lado e o de banho, com banheira de louça azul. O Gerente tomou banho. A toalha quentinha, passada a ferro de brasas para amaciar, o sabão cheiroso, na banheira a água na temperatura certa. De chinelos e roupão desceu para sala, entrou pela cozinha destampando panelas...

- Ah! Um franguinho ensopado! Quanto tempo não como uma coisa assim tão cheirosa, tão apetitosa!

- Sinhô gosta? Pois é. É do quintal mesmo. Criamos o infeliz desde pinto e só com milho e pasto!

Janta vai e vem conversa, cafezinho para boca de pito, noite vindo e o Gerente não se mexe na cadeira. A mãe bota os filhos para dormir, a tia velha se escora sem esconder bocejo e a avó disfarça. Sai de fininho para arrumar a cama de hóspede.

- É... Acho mesmo que o melhor é a gente ir dormir. Hoje nosso Gerente se ajeita por aqui mesmo. A casa é modesta, mas decente. Amanhã é outro dia.

- Estou mesmo com sono. Esta comidinha boa e este sossego e lua do interior me deram uma lombeira do cão.

Lá pelas dez da manhã nosso sossegado hóspede aparece para o café. Biscoito frito, brevidades, broa de milho, leite da roça.

- Tenho aqui umas camisas, uma calça precisando lavar. Será que a senhora pode pedir para Dona Maria?


- Não se incomode! O senhor deixe em cima da cama que nós providenciamos tudo!

O Gerente saiu à rua e só voltou lá pelo meio-dia. Suado, batendo a poeira do sapato ao degrau da casa.

- Eta calor danado!

- Vá se lavar que já agorinha pomos a bóia.

E assim foi. Dia a dia, mês de janeiro correu, fevereiro foi de galope e só em abril chega a família. O Gerente foi esperar na estação e às cinco da tarde aparecia a composição na plataforma. Chegando em casa...

- Aqui estamos minha querida! Essa gente maravilhosa me deu todo apoio e pousada este tempo inteiro!

A avó teve que segurar-se à parede. Junto a uma mulher beirando os trinta anos entraram sete guris em escadinha de idade. O último à barra da saia da mãe. A esta altura da coisa não havia muito a fazer. O jeito foi tocar água no feijão, cortar mais uns tomates, aprontar mais couve, botar umas batatas no fogo. Eram tempos difíceis. Não que faltasse a comida. Mas, naquela época, naquele fundão de Minas, se não dependia do poder do dinheiro, dependia de ter o que se comprar. E quase não tinha. A criançada dava dó. Empoeirados da s horas passadas no trem e com os olhinhos arregalados de quem estranha tudo. A avó, de coração mole como suas pernas, nem pensou para dizer...

- Maria! Ferve a água. Vamos arrumar um banho para esta meninada!

A preta Maria sai resmungando... “pois sim. Oito banhos e quantas toalhas? Tanta água... Arre!” Banhos tomados, meninos de roupas trocadas, descem para o jantar. A avó e Maria na cozinha preparavam o tutu, cortavam ovos em rodelinhas caprichosas, picavam a lingüiça para render mais, arroz fumegando na panela de pedra, o lombo corado na frigideira e a preocupação...

- Meu Deus! Será que eles vão reparar?

Não repararam. Comeram tudinho com voracidade infantil. Agora, como acomodar toda aquela gente?

- Sinhô Gerente... (a avó começou devagarinho...) Não tem cabimento o senhor sair daqui umas horas dessas. Por hoje vocês se ajeitam por aqui mesmo e amanhã todos vamos conhecer a casa nova... Que tal?

- A bondade da senhora não tem igual. Já arrumei mesmo a casa. Sabe como é? Os móveis chegaram agora na estação. Até descarregar e entregar na casa, colocar tudo no lugar, leva tempo.

Nem foi no outro dia, nem mesmo naquela semana. Só dias depois nossa tranqüila família tomou o rumo de casa. Pobre avó. Muito longe de tecer lamúrias por tantos dias e tanto trabalho, cismava...

- Será que eles não repararam?

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Caro amigo. Isto pode acontecer com você. Quando aparecer aqui em Minas e precisar de pousada, pode entrar. É só não reparar...

Isa Musa de Noronha