quinta-feira, 10 de junho de 2010

PC bom de bola

Boas relembranças sempre são bem vindas. Muitos jacobinenses ainda guardam em mente os “bábas” no Campinho “soçaite” da Associação Atlética Banco do Brasil-AABB de Jacobina (BA), nas décadas de 1970 a 1990, principalmente. Os “rachas” dispensavam comentários. Aliás, serviam de registros antes e depois daqueles eventos de final de semana. Concorridos além dos limites; aos sábados, duas horas antes da bola rolar, a lista - para três times - já excedia em muito. E no período de dezembro a março é que o “bicho pegava”, pois, funcionários que já haviam trabalhado na Agência do BB (Jacobina-BA), ou filhos da Terra que moravam em outras localidades e, naquela época, ali se encontravam de férias, engrossavam mais ainda a concorrência.
E não era só de “peladeiros” que enchia o clube: torcedores, freqüentadores, “biriteiros” e outros admiradores do esporte se amontoavam sob a sombra das grandes árvores que margeavam uma das laterais do campo e sob o efeito de boas goladas de “loirinhas” e “branquinhas” atiçavam os participantes.
Pois bem! Em 1982, era diretor esportivo do clube Amilton Vasconcelos. Também jogava, organizava, comentava, criticava e fazia enrola em campo como ninguém; catimbeiro igual não se conhecia. Se no desenrolar de um jogo-treino as coisas desandassem para o lado dele, era o bastante para se enervar; qualquer lance que ele considerasse desfavorável ao seu time, apanhava a bola, colocava debaixo do braço, partia para cima do juiz e debulhava todos os códigos esportivos perante aquele voluntário. Muito conhecedor de regras de futebol e por esse atributo ninguém se atrevia a argumentar com ele, muito menos a expulsá-lo de campo. Profundamente apaixonado por futebol, acompanhava – pela imprensa falada, escrita e televisada - todas as movimentações desse esporte. Sabia de todas as transações entre clubes; da ficha completa de qualquer jogador, estivesse esse no Brasil ou exterior. E, se não bastasse, em quase todas as suas comparações sempre aparecia uma bola, uma jogada desse ou daquele atleta. Aliás, nas suas redações, nem costumava pingar os “is”: fazia-lhes bolinhas ao invés dos gramaticais pontinhos ou pinguinhos.
Num daqueles sábados, tudo se repetiu como dantes: lista completa, times escolhidos, cara ou coroa para escolha dos lados do campo; torcida presente, etc.
No time de Miltinho, apelido de Amilton Vasconcelos, ficou Antônio Carlos, também conhecido por Paulo César, ou simplesmente PC. Assim carinhosamente chamado pelos colegas e amigos pelas suas semelhanças físicas - e somente físicas - a Paulo César (Caju) aquele mesmo que jogou no Flamengo, Botafogo, Seleção Brasileira, etc.
PC, recém empossado no Banco do Brasil, ainda calouro, obedecia a tudo e a todos. Se lhe mandassem buscar a ”máquina de procurar diferenças” em qualquer banco da concorrência, o novato funcionário não se fazia rogado; nem era preciso cuspir no chão, pois, célere como um raio, superaria todos os prazos ou tempos de espera.
Compondo o outro time ficou Edvaldo Oliveira, conhecido com muita intimidade por “Coelho”; filho da Terra – nascido no Povoado de Junco, no termo de Jacobina e, na ocasião, trabalhava no BB-Agência em Quirinópolis (GO); “peladeiro” inveterado. De férias em Jacobina, veio participar do costumeiro ritual esportivo; rever colegas, amigos e tomar uns “gorózinhos”. Oportunidade essa em que unia o útil ao agradável.
Tudo pronto para o semanal amistoso. Mas, antes do pontapé inicial Miltinho chama PC à parte e cochicha-lhe ao ouvido uma difícil missão técnico-tática:
-PC, você vai marcar “Coelho”; sua única função vai ser essa. Cole nele; não o deixe andar; para onde ele for você vai atrás. Não quero que você faça outra coisa em campo a não ser isso, entendeu?
PC mais do que concentrado ouviu as determinações do “professor”, e fez um sinal afirmativo com a cabeça. Nada mais.
A bola rolou e o ritmo de jogo era tão acelerado que parecia final de Copa do Mundo entre duas seleções bem rivais. Ninguém queria perder para não amargar o tempo de espera no time de fora.
O atleta Edvaldo (Coelho), a quem o Miltinho incumbiu PC de marcar, jogava no ataque e costumava fazer gols. Meio arisco e nos primeiros minutos dava canseira aos seus marcadores. Pior é que PC não tinha nada de intimidade com bola; não levava jeito para futebol, apenas gostava. Era aquele chamado de “atleta” de fim de semana; resultado era o que menos lhe interessava; dar umas carreirinhas atrás da bola, seguindo-se de uns mergulhos na piscina; uma cervejinha e completava sua programação semanal. Acredita-se que já nos primeiros minutos de jogo PC já se arrependera de ter aceitado a tal incumbência, mesmo assim, alheio aquele tipo de responsabilidade, naquela oportunidade, queria mesmo era se divertir. Até por que seu ego transbordava de alegria, não bastasse achar-se recém empossado no Banco do Brasil e também está pisando aquele lindo e macio gramado - naquela ocasião -, tão cobiçado pela massa desportiva da microrregião.
“Coelho” costumava correr pela direita em alta velocidade e quando apanhava a bola no meio do campo partia para cima de PC; cortava para direita, esquerda; entortava-lhe tudo: pescoço, coluna, pernas. Era um vexame para aquele defensor. O suor encharcava-lhe a camisa, o corpo todo. A falta de preparo físico deixava-lhe numa tremedeira só.
Em poucos minutos de jogo, o time de “Coelho” já despejava um rosário de gols sobre o time de Miltinho e a maioria dos lances mortais saíra pelo lado esquerdo, onde atuava PC. Era um massacre sem limites. Volta e meia Miltinho colocava as mãos na cintura; e mentalmente interrogava a si mesmo sobre o desastroso e adverso escore. Não estava acostumado a placares adversos, muito menos elásticos. Respirava fundo. Olhava discretamente para PC. Meneava negativamente a cabeça e não lhe achegava uma mudança tática ou técnica que evitasse ou minimizasse a tragédia que os seus olhos presenciavam. Odiava perder um “bába”; treino ou amistoso para ele valia ponto, como se jogo oficial fosse. Garra não lhe faltava, fosse ao começo ou final de partida. Atleta outrora refinado, e para ele, - pela experiência adquirida no Leader Esporte Clube e Selecionado Jacobinense de Futebol - aquilo era vergonhoso. A bagagem técnica e a vivência em grandes decisões esportivas não foram suficientes para livrá-lo daquela vexatória situação. Fora, de fato, traído pela sorte na escolha dos participantes. Quando viu aquele jovem franzino, canhoto, “batendo na bola” com aparente intimidade, mentalizou positivo. Puro engano. O tal atleta pregou-lhe uma caçoada. Tudo que previu - liquidar o time adversário nos primeiros minutos de jogo,ocorria contrariamente. E pior, não havia tempo para mais nada, agora era suportar a “caqueirada” de gols e se preparar para gozação no final.
Com tudo isso, a bola rolava sem cessar, e a certa altura do jogo, “Coelho” que gastava todo o “gás” no início do jogo, já se esquivava pelas laterais do campo em busca de um pouquinho de sombra e tentando fugir da “implacável marcação” do PC. Num dado momento, o atacante “Coelho” deu com o olho, na beira do campo, em um grande amigo que há muito não via. E mesmo com o jogo em andamento, foi apertar a mão do companheiro e lá se deteve por alguns segundos, até para respirar um pouco. E o PC na cola. Mas, como o jogo não parava por nada, o time de “Coelho” – infinitamente superior ao de Miltinho – continuava em sucessivos contra-ataques mortais; era um bate e rebate na área sem alívio. Miltinho desesperado procurava PC em todos os espaços do campo, mas não o encontrava. E pensava: já não bastava a goleada que o seu time estava sofrendo e, ainda assim, o seu jogador de “confiança” lhe deixara na mão e naquele instante desapareceu do jogo e do campo. Não se conteve, agarrou a bola com as mãos e segurou. Com o olhar muito rápido percorreu os quatro cantos e foi localizar PC, em pé, na lateral do campo, onde também se achava o “Coelho”.
Miltinho esbravejou:
-O que está fazendo aí, PC!?
Paulo César sem nenhuma hesitação e muito calmamente respondeu:
-Estou marcando o “Coelho”...
Miltinho mudou de cor. Se já estava preto de raiva, ficou pior ainda. Arregalou os olhos para cima do PC e contestou:
-Mas, a bola está em jogo, PC. Nosso time perde... e de muito...
E PC, com mais descontração, respondeu:
-Antes de começar o jogo, você disse que era para eu marcar o “Coelho”; que não desse espaço a ele; que para onde ele fosse eu o acompanhasse; não o perdesse de vista... Exatamente estou cumprindo as suas orientações técnicas. Ele veio falar com um seu amigo e eu estou colado com ele; quando ele voltar para o jogo, eu volto junto. Não foi isso que você me determinou?
Miltinho entalou; “cuspiu marimbondos”, tal a sua ira; sacudia a cabeça que nem boi enfezado; se até aquele momento não conseguiu entender a razão daquela maiúscula goleada, aquela atitude de PC mostrava-lhe o efeito da causa. Imaginava consigo mesmo: já que não tem intimidade com bola, por que não fica ligado nas brechas que lhe abrem os adversários. Miltinho, esperto como poucos, enxergava que exatamente naquela oportunidade em que o “Coelho” estava na beira do campo conversando com o amigo, era chegada a hora de partir para cima do time dele e, quem sabe, diminuir o placar. Assim ele pensava, mas o PC não estava nem um pouco sintonizado, queria apenas participar, ou simplesmente seguir à risca as orientações recebidas. Se ele, Miltinho, disse que era para colar no “Coelho”, não desse espaço, etc. Exatamente isso que estava fazendo. Nas instruções recebidas só constava apenas que era para marcar o “Coelho” e nada mais. Por isso estava seguindo à risca.
O calvário de Miltinho terminou com o apito final. Emburrado, passou de passagem para o chuveiro; não deu entrevistas; nem fez comentários. Molhou a cabeça, aportou numa mesa e se deliciou com uma cerveja gelada, – outra de suas paixões - para refletir sobre suas recomendações táticas. Por fim, chegou à conclusão que, de fato, se enganou ao exigir tanto de quem ainda não conhecia as “potencialidades”. Primeiro conhecer para depois pedir.
E mais esperto ficou para não contabilizar esses tipos de insucessos em sua vida desportiva.

Carlos PROCÓPIO Dias da Cruz
Jacobina-BA, 2003-08-02